10/08/2025
A discussão sobre a “alta a pedido” no contexto pediátrico envolve um delicado equilíbrio entre a autonomia dos pais, enquanto detentores do poder familiar, e o dever do médico de zelar pela vida e saúde de seus pacientes.
No caso de crianças e adolescentes, esse equilíbrio é regido por um conjunto de normas jurídicas e éticas que limitam a liberdade parental quando decisões podem comprometer a integridade física ou psíquica do menor.
A Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) estabelecem a proteção integral como princípio norteador, determinando que a criança é sujeito de direitos e que sua vida e saúde devem ter prioridade absoluta. O artigo 4º do ECA é categórico ao afirmar que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação desses direitos, o que significa que o poder familiar não se sobrepõe ao direito fundamental da criança à vida e à saúde.
No âmbito médico, a alta hospitalar é ato privativo do médico assistente, nos termos do artigo 4º da Lei nº 12.842/2013 (Lei do Ato Médico) e das disposições do Código de Ética Médica (CEM), aprovado pela Resolução CFM nº 2.217/2018. Essa prerrogativa confere ao médico não apenas a competência, mas também a responsabilidade legal e ética de decidir sobre a liberação do paciente, sempre com base em critérios técnicos e no melhor interesse do paciente.
Quando se trata de pacientes pediátricos, especialmente em casos de risco iminente de morte ou de dano grave, a autonomia dos pais encontra um limite claro. O CEM, em seu artigo 31, prevê que o médico deve respeitar a vontade do paciente ou de seu representante legal, salvo em situações de risco iminente de morte, quando poderá agir sem consentimento. Assim, se a criança apresenta quadro clínico grave, a alta não deve ser concedida, ainda que solicitada pelos pais.
Nesses casos, o dever de proteção à vida autoriza e exige que o médico mantenha o tratamento, podendo inclusive acionar o Conselho Tutelar ou o Ministério Público para garantir a continuidade da assistência.
Na ausência de risco iminente, a manifestação dos pais pelo pedido de alta deve ser tratada com cautela. É possível concedê-la, desde que sejam adotadas medidas que preservem a segurança da criança e a responsabilidade profissional do médico. Entre essas medidas, destaca-se a assinatura do termo de recusa terapêutica, documento em que o responsável declara ciência dos riscos da interrupção do tratamento.
Além disso, é imprescindível que o médico entregue relatório detalhado da internação, laudo médico e prescrição das condutas necessárias após a saída, registrando minuciosamente toda a situação no prontuário. Essa documentação protege tanto a criança, garantindo continuidade do cuidado, quanto o profissional, resguardando-o de responsabilizações futuras.
A evasão hospitalar quando os pais retiram a criança sem autorização médica e sem qualquer formalização exige conduta ainda mais rigorosa. Nesse cenário, não se trata de alta a pedido, mas de saída irregular. O médico não é obrigado a fornecer documentos no momento da evasão, embora o responsável tenha direito posterior ao acesso ao prontuário.
É fundamental registrar detalhadamente no prontuário todas as circunstâncias, horários, orientações prestadas e eventuais recusas de assinatura de documentos. A autonomia parental, portanto, não pode ser compreendida como poder absoluto para decidir sobre a saúde dos filhos quando essas decisões implicam risco concreto à vida ou à integridade física do menor.
A função do médico, respaldada pelo CEM, pelas resoluções do CFM e pelo ECA, é agir sempre pautado pelo princípio da beneficência, buscando o melhor desfecho clínico e protegendo os direitos fundamentais da criança. Em suma, a “alta a pedido” em pediatria exige análise cuidadosa e fundamentada.Quando a saúde da criança está em risco iminente, a vontade dos pais cede diante do dever médico de proteção. Sem risco imediato, a saída pode ocorrer, desde que documentada com rigor técnico e legal. Nos casos de evasão, o registro minucioso é indispensável.
Em qualquer cenário, a prioridade é sempre a proteção integral da criança, princípio que deve guiar tanto as decisões médicas quanto as escolhas parentais.
Dra. Michelle Andrade. É advogada-sócia do Andrade & Candido Advocacia Médica e da Saúde, pós-graduada em Direito Médico pela Faculdade Legale – É formada em Direito pela Universidade Nove de Julho - Uninove.